O avanço da tecnologia, além de possibilitar um olhar para o que pode ocorrer no futuro, prevendo possibilidades e desafios, leva o psicanalista Christian Dunker, professor da Universidade de São Paulo (USP) e um dos mais celebrados profissionais da área no País, a buscar na História alguns passos para a compreensão do sujeito e para a identificação de novas formas de sofrimento, que se associam às transformações pelas quais o mundo passa na relação entre Ciência, Técnica e Ética.
O avanço da tecnologia, além de possibilitar um olhar para o que pode ocorrer no futuro, prevendo possibilidades e desafios, leva o psicanalista Christian Dunker, professor da Universidade de São Paulo (USP) e um dos mais celebrados profissionais da área no País, a buscar na História alguns passos para a compreensão do sujeito e para a identificação de novas formas de sofrimento, que se associam às transformações pelas quais o mundo passa na relação entre Ciência, Técnica e Ética.
Século 25: No seu livro “Reinvenção da Intimidade – Políticas do Sofrimento Cotidiano” (Editora Ubu, 2017), o senhor fala da existência de duas formas de solidão: a patológica e a benéfica. Que efeitos o momento histórico em que vivemos, sobretudo no que diz respeito aos avanços tecnológicos, produz nessas novas formas de solidão?
Dunker: O avanço tecnológico favorece bastante a solidão patológica, porque as novas tecnologias ocupam uma parte muito grande da vida diária, inclusive aqueles períodos que, antes, eram chamados de mortos, como o tempo gasto em fi las de banco, nas salas de espera, no transporte público e, eventualmente, até no carro durante o trânsito. As tecnologias passaram a ocupar esses momentos do tempo da vida que poderiam ser usados para um processo de descompressão narcísica, de separação de si, de divisão e devaneio, de olhar e experimentar a vida e o corpo de outras perspectivas. Isso não significa que, com a tecnologia digital, você suprima isso, mas, de certa forma, você vai precisar cuidar de algo que, antes, a sua compreensão de mundo cuidava. Há pessoas que precisam mais disso, outras precisam menos. Há momentos da vida em que a gente convoca mais essa necessidade e, noutros, isso não é tão necessário. Então, quando se cria uma forma de vida de ocupação permanente, que é potencialmente trabalho e sociabilidade, começa-se a ter patologias da hiper-sociabilidade.
“As tecnologias passaram a ocupar esses momentos do tempo da vida que poderiam ser usados para um processo de descompressão narcísica.”
Século 25: É possível dizer que novas patologias surjam a partir desse cenário?
Dunker: Com certeza. É o que estudamos no Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise [na Universidade de São Paulo – USP]. É a ideia de que as doenças mentais não são propriamente doenças, porque elas respondem profundamente, etiologicamente, às nossas formas de vida, que se alteram em função de padrões de individualização, de criação, de padrões sócio-simbólicos, discursivos. Então, há uma constância, há sintomas que se repetem, como a melancolia e a histeria, que são descritas desde a Antiguidade Grega, mas, ao mesmo tempo, há um processo de definição política, no sentido foucaultiano, de quais modalidades de sofrer são próprias dos centros de conflito que aquele momento histórico propõe. Então, há novas formas de sintomas, embora não completamente novas. Se você for olhar historicamente, você vai encontrar, em algum momento, uma espécie de homólogo histórico.
Século 25: Se elas não são completamente novas, nem exatamente iguais ao que já se viu em outros momentos, o que elas têm de diferentes? Dunker: Isso ocorre porque o sintoma tem um envelope formal, que diz respeito aos seus modos de apresentação e de interpretação. Vamos pensar, por exemplo, no que é uma anorexia hoje. É uma situação em que alguém começa a desenvolver um certo gosto pela experiência da fome e aquilo tramita psiquicamente de forma a levar o sujeito a um tipo de satisfação, do qual ele não se desgarra e que, ao mesmo tempo, é letal, pois pode levar a pessoa à morte. Isso é também uma resposta para o mundo que, permanentemente, diz a essa mesma pessoa: “coma mais”, “comer é um modo de a gente se satisfazer”, “coma junto conosco”. Então, a anorexia é uma forma que essa pessoa encontra para se separar dos outros. Historicamente, a gente vê que, de 50 a 50 anos, temos uma epidemia de anorexia que, depois, passa. Se recuarmos mais ainda no tempo, vamos encontrar as místicas do século XII, na Renânia, entre as atuais França e Alemanha. Elas diziam que, por terem um contato específico com Jesus ou por manterem uma relação com Deus, isso as alimentava, elas não precisavam comer, pois Jesus ou Deus colocava-lhes luz dentro do corpo, nutrindo-as. Quem eram elas? Essas mulheres, como a santa católica Marguerite Porete, estavam numa situação social completamente anômala para o período. Elas não pertenciam ao marido, tampouco a uma ordem religiosa.
Elas viviam sozinhas em suas casas. Veja só que escândalo para o século XII! A anorexia delas também era uma forma de suportar, de articular essa separação. Se olharmos para a história dessas santas e para as nossas anoréxicas, é possível que se diga que são coisas muito diferentes, ou seja, nem se percebe que se trata do mesmo sintoma, já que uma é estudada nos livros de Teologia, como parte da mística-cristã, e a outra está no discurso da Medicina, da saúde e do bem-estar.
Século 25: Nessa mesma linha, o senhor acredita que estamos considerando adequadamente o crescimento do ódio, sobretudo a partir das redes sociais?
Dunker: As redes sociais produzem três tipos de montagens: os afetos, as emoções e os sentimentos. Todos os três são exponencializados. Os afetos são as formas com que a gente recebe o que o outro nos diz. As emoções são as maneiras como reagimos a esses afetos, o destino que damos a eles. Já os sentimentos são as formas como a gente compartilha, socialmente, os afetos e as emoções. Então, as redes sociais são tipicamente dispositivos de homogeneização dos sentimentos e de catalisação de afetos.
Século 25: Por quê?
Dunker: Porque os algoritmos que temos na rede seguem uma regra básica, genética, que é oferecer mais do mesmo. Se você consome x, o que será oferecido a você será x-1. Se você o consumir, x+2 lhe será dado e assim por diante. Isso também vale para os afetos. Então, as redes sociais vão catalisar afetos que começam a criar comunidades, que não estão baseadas na possibilidade de ser afetado por isso ou por agir, mas por certo sentimento de base, como a pena ou o carinho a uma determinada espécie animal. O ódio parece mais conspícuo porque é uma forma de afeto que não costumávamos ver de forma tão organizada. Geralmente, o ódio é um afeto com o qual a gente se aproxima apenas reativamente. Não é comum ficar com ódio e instrumentalizá-lo, agir. Mas isso é visto nas redes sociais. A partir disso, você tem uma ligação com a política institucional, porque partidos e projetos políticos instituídos se perguntam: qual é a paisagem de afetos que nos convém? A partir disso, ligam-se a comunidades, seja de ódio, de medo. Articulam-se. Isso faz com que os discursos assumam uma potência política que é inaudita, que é nova.
Século 25: Em um do seus textos, ao fazer uma reflexão sobre a morte e o morrer, o senhor escreve que “aquele que confia na Ciência ou que acha sua própria forma de vida sem falhas de sentido estará mais exposto a dificuldades de lidar com crise de pânico”. Qual é, afinal, o papel da Ciência?
Dunker: A Ciência passou por uma adequação muito forte de 20 ou 30 anos para cá, inclusive na forma como a ela mesma se pensa. Vamos lembrar que os primeiros usos da internet, os usos mais pesados do ambiente virtual, estavam ligados à Ciência e à Tecnologia. Agora, nós já temos, pela primeira vez, sistemas de controle e oferta online de formação para decisões médicas, por exemplo. Nós já temos uma consonância disso com um novo tipo de Medicina, a Medicina baseada em evidências. Dessa forma, é possível coletar, junto com o ato clínico, no leito do paciente, quais são os consensos, os protocolos, os procedimentos nos quais a gente deve mais confiar para as decisões naquele tipo de caso. Isso vai, capilarmente, atravessando outras formas de fazer Ciência e misturando duas coisas que, historicamente, estavam separadas, ou seja, a Ciência e a Técnica. Uma coisa são as descobertas de uma forma específica de conhecimento, que tem um tipo de universalidade prevista, que dependem de uma linguagem, de uma lógica de conhecimento entre cientistas, de um debate. Mas, antes, esse era um debate do qual poucos participavam.
“A política, inclusive a política de Estado, vai influir muito mais diretamente no que nós estamos chamando de Ciência e o que nós estamos excluindo dela.”
O que a gente tem na Tecnociência é uma outra maneira de caracterizar essa nova fase, que funciona em plataforma aberta. Então, o debate se expandiu muito e a relação da Ciência com a Tecnologia começa a ser de uma auto alimentação muito mais forte e acelerada. Na Física, por exemplo, a possibilidade de construir máquinas para investigar uma determinada hipótese determina a validade científica daquela hipótese. Então, quem é que tem condições de construir aquela máquina? Quem é que vai decidir se será a máquina A e não a máquina B que vai ser construída? Essa é uma decisão política. Isso quer dizer que a política, inclusive a política de Estado, vai influir muito mais diretamente no que nós estamos chamando de Ciência e o que nós estamos excluindo dela.
A Ciência se politizou, como a cultura se politizou. São dois efeitos genéricos da linguagem digital, de tal maneira que temos efeitos patológicos, como a pós-verdade e as fake news, que são desvios previstos disso. À medida em que se trabalha com plataforma aberta e que não se está mais garantido por uma organização social vertical, desmembra-se também a autoridade que dizia que algo tinha senso científico e algo não o possuía. Ressurgem, então, atitudes medievais, obscurantistas, em termos de racionalidade, que assustam, porque deixaram de ser apenas opiniões erráticas e controversas.
É dessa maneira que você vai ter gente contestando o aquecimento global, gente falando em terra plana, falando que o homem não chegou à Lua, porque, assim, cria-se uma espécie de democracia para a discussão científica. É claro que isso virá acompanhado de um discurso que vai descartar tais posições, porque existe um conjunto bastante completo de argumentos racionais, de história da Ciência etc., que dizem o quanto é improvável que as coisas sejam dessa forma.
Século 25: Mas como podemos pensar numa formação do ser humano que considere tanto a ideia de democratização quanto a derrocada desses efeitos obscurantistas?
Dunker: Essa será uma tarefa para os nativos digitais, que vão propor modelos de formação, de educação, de organização do saber, o que a gente ainda faz de uma forma muito precária. Minha geração vai apenas contribuir com isso. No universo digital, por exemplo, não foram ainda estabelecidos certos conceitos e consensos jurídicos. O que você não pode fazer exatamente? Certos consensos institucionais também não foram: quais são os sites, os métodos de verificação nos quais a gente mais ou menos confia? Isso depende, necessariamente, de um certo tempo para se estabelecer. Depende do uso, de experiências ruins, de casos bem-sucedidos numa ponta e de malsucedidos noutra. Enquanto isso não acontece, muita gente vai morrer, não biologicamente falando, mas psíquica e cognitivamente.
Século 25: Nós estamos numa fase em que se fala, por exemplo, da possibilidade de um ser humano escolher, via manipulação genética, as características de um filho. Como lidar com isso de modo ético?
Dunker: Em geral, essas são questões que justamente recolocam de forma mais aguda os limites entre Ciência e Técnica. São pontos em que acontece uma espécie de curto-circuito. Você olha e pensa que a Ciência sempre está num casamento harmonioso com a Técnica, em que uma ajuda a outra e ambas formam um mesmo sistema, no qual não se consegue mais discernir quem é quem. Mas isso não é verdade. Há momentos em que as duas coisas realmente se opõem e a gente precisa contrariar alguns axiomas do tipo “se existe a tecnologia, ela vai ser usada”. A gente já conseguiu contrariar esse axioma historicamente com a questão da bomba atômica. Existe? Sim. Ela foi usada? De uma forma um pouco esparsa… Ainda tememos que ela retorne e ela é uma precursora dessa discussão. A diferença é que a bomba não foi usada porque há Estados que conseguiram controlar bem o acesso a essa tecnologia. Vamos conseguir fazer o mesmo com a manipulação genética? É provável que não. Vamos ter acidentes genéticos nesse percurso e vamos precisar desses casos para criar legislações. Vai acontecer como ocorre na relação entre Ética e Direito. Primeiro vêm os experimentos éticos, depois vem o Direito, restringindo o uso e o abuso desses instrumentos.
Século 25: E nesse contexto, o que compete à Psicanálise?
Dunker: Primeiro, detectar novas formas de sofrimento, novos agenciamentos de sintomas, antes que eles sejam absolutamente ‘normatizados’. No entanto, a Psicanálise tem questões para se recolocar, do ponto de vista de seus fundamentos. Isso quer dizer que, se há mudança no uso da linguagem, muda-se também a Psicanálise. Muda também o ponto de vista da formação dos psicanalistas, que já é muito menos vertical do que sempre foi. A Psicanálise também se mostra de uma maneira mais rizomática, mais em rede, o que tem feito ela se tornar muito mais visível na cultura. É um efeito desse reposicionamento. Vejo também que a Psicanálise está aparecendo como um ponto de vista alternativo, quiçá crítico, quando se ouvem institutos de pesquisa e eles indicam atitudes latitudinais de comportamento. Isso é Psicologia, é Psicometria.
Hoje, em vez de aplicar testes, como se fazia nas décadas de 60 ou 70, vai-se in loco e pega-se o comportamento real das pessoas. A partir disso, equacionam-se tendências de repetição. Mas quem é que, historicamente, opõe-se à Psicometria? A Psicanálise. A Psicanálise é o discurso, dentro da Psicologia, que questiona fundamentos metodológicos, que questiona o modelo de sujeito que vem junto com a Psicometria, que oferece uma perspectiva que tenta levar em conta as anomalias desse modelo. Esse modelo é muito bom quando ele nasce. Ele responde, aceitavelmente, a 70% ou 80% de como as pessoas agem em comportamento de massa. Mas, quando nos aproximamos das experiências reais, por exemplo, as experiências intersubjetivas, mais íntimas, mais próximas, portanto, da vida real, o modelo começa a não funcionar tão bem. É o que a gente já conhece desde a Economia e o conceito de sujeito que age racionalmente com relação a fins, segundo seus próprios interesses. É possível que a Psicanálise perca algumas dessas contendas, mas ela tem pontos a oferecer contra o poder psicométrico. Parece-me ser esse o papel dela numa nova tecnologia política das atividades.
Século 25: Estima-se que daqui 20 ou 30 anos, a Inteligência Artificial possa superar a inteligência humana, em termos de capacidade de leitura de material científico. Por outro lado, há um descompasso entre a subjetividade e a evolução da tecnologia, fazendo reaparecerem discursos medievais, como falávamos. O senhor acredita que o ser humano possa evoluir a ponto de fazer um uso ético da tecnologia?
Dunker: Temos aí o que poderíamos chamar de uma pequena história do Futurismo. Vamos reler o que dizia Nicholas Negroponte, há 30 anos, sobre o que seria a vida digital. É um clássico. Vamos reler o que disse Faith Popcorn sobre a criação dos desejos. Vamos reler o que eram os clássicos sobre a vida no futuro. Todos eles acertaram, mas também erraram muito, principalmente, no processo de impacto social da tecnologia. Isso é razoável, porque tecnólogos, em geral, entendem de técnicas. As técnicas são bem-sucedidas ou malsucedidas em função de efeitos temporais que têm outra inscrição no chronos, que caem de maneira diferencial, quando a gente pensa na geopolítica, nas formas de desejar e de amar. Hoje, há uma série de coisas que deveriam estar acessíveis pela visão de futuro dos anos 80, mas elas praticamente não conseguem escala, não atingem as pessoas comuns. Por exemplo, uma previsão de que me lembro era de que as pessoas não iriam mais sair de casa, porque tudo chegaria pelo computador. Correto? Correto. Aconteceu? Não. As pessoas gostam de sair de casa. A ideia de você ficar dentro do seu ambiente o tempo todo pode não ser interessante. Isso não foi considerado naquelas previsões. As pessoas, inclusive, vão a lugares em que elas trabalham eletronicamente na frente de um computador e, depois, voltam para casa. Isso nos mostra que há coisas que não andam na velocidade da técnica, como o Direito Trabalhista, a saúde mental e as formas de sociabilidade que, mais uma vez, estão sendo subavaliadas. Vemos a previsão de Inteligência Artificial, que é ótima, mas ela padece de um problema que é a dificuldade do seu barateamento. Tudo o que você consegue produzir em escala de milhões vira gratuito. Essa gratuidade vira padrão de comportamento, mas interfere destruindo empregos e criando uma dificuldade adicional, ou seja, a dúvida sobre o que fazer para que as pessoas tenham dinheiro e continuem consumindo. É uma regulação que a técnica sozinha não consegue fazer. Se não mudar a economia, a tecnologia estará restrita somente a um grupo social.
Por Fabiano Ormaneze